domingo, 30 de outubro de 2016

três poemas de José Manuel Simões

do livro "Sobras Completas", uma antologia única de José Manuel Simões (Lisboa, 1934 – Paris, 1999), um dos menos conhecidos poetas do grupo do Café Gelo. Ed. abysmo

 

 
 
 

 

 

mymesis


o vento    placenta   psicadélica
de um gesto voador      
cabriola 
tentando roubar da alta planície  
dores inalcançáveis de tão sós 
brancas terras finas espelhando 
a espuma fágica do seu limite 
em gestação 
o país era um rosto esquivo e recente 
virado para o beco de um oceano 
que te amanhecia na pele 
com a secura de um sopro
estalado pelo sol 
em pleno gorongosa 
o rugido de um leão 
deixado para trás 
nessa 
invenção da distância – única definição 
de amor que alguma vez consegui
compreender e assim te dei 
por completo e sem forma
de desistir 

sábado, 29 de outubro de 2016

retrato póstumo

                                                                  ao gato piruças

um quadrado de terra na cidade
um verão de amendoeira
uma flor, uma pedra luminescente no peito 
da igreja
a respiração ainda quente de uma boca derrotada
um dia cruel
um novo homem que nasce do fim
um gato de sombra que nasceu da invenção 
de uma escada
e a sombra de um gato que morreu 
como a divisão de uma casa
— a dor à volta da qual tudo se constrói

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

dois poemas de Dylan Thomas

escolhidos pelo Nuno Miguel Guedes a partir da antologia publicada pela Assírio & Alvim – "a mão que assina este papel" – no centésimo segundo aniversário do seu nascimento 

"A luz irrompe onde nenhum sol brilha"

 

 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

o espectáculo da febre 
era um céu aberto 
dentro de uma laranja 
os olhos esticados como dedos 
despedaçavam o vento 
no teu rosto, quieto 
fervendo até se abrir na boca
a foz de um pensamento 
onde o precipício – livre
mastigava lentamente os homens
que caíam sem causa
pelo dilúvio

de uma qualquer deusa

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

António de Castro Caeiro lê "Desvão", de Miguel Martins

não-edições



















Ein Buch ist ein Spiegel, wenn ein Affe hineinguckt, so kann freilich kein Apostel heraus sehen.

Georg Christoph Lichtenberg

O adágio de Lichtenber aplica-se com a sua força máxima à poesia de Miguel Martins neste seu Desvão. Os treze poemas que compõe o livro podem ser lidos isoladamente. Quem leu alguns avulso no seu Blog terá feito essa experiência. Mas os treze são também uma unidade orgânica. Apresentam elementos complexos de uma poética da facticidade.

Podemos identificar temas que estão sob foco poético em cada um dos poemas. Mas há uma mesma identidade trama temática bem como operadores poéticos. A poesia abre o olhar sobre si própria e não apenas sobre a vida com a qual lida, a que se reporta, de onde parte.

Em “Há, entre a tela e o olhar, uma película” encontramos um pensamento sobre este ponto de vista ou perspectiva a partir dos quais o objecto de cada poema é considerado. Melhor, percebemos aí como toda a realidade é isolada, vista e interpretada, a partir de um ponto de vista que não está disponível habitualmente, possa embora encontrar-se implícito de forma latente, à espera da possibilidade de ser inaugurado e ficar aceso.

A realidade poética não é apenas aquela que se encontra expressa em cada poema, em cada verso, em cada palavra. Antes, toda e qualquer realidade, os outros que aí se encontram. As praias. Os quartos. As ruas. Os sinos. Os relógios. Os carros que passam na avenida. Lágrimas e ostras. Bem como a entidade complexa a que chamamos nós próprios e as relações que se estabelecem com os outros e com o mundo. Toda e qualquer realidade é filtrada pelo olhar excessivo do ponto de vista poético.

“Entre a tela e o olhar há uma película mais ou menos fina, mais ou menos espessa, a que costumamos chamar, arte, como se entre a vida e os trovões, a insinuação de uma matéria tépida pudesse aliviar-nos da fraqueza e do medo.” (12)

A película é um campo de forças aparentemente inerte e desligado, isto é, ainda não accionado. A poesia esconjura-a. Olhar e tela são também vistos através da película. Tudo encontra-se envolvido por uma atmosfera e por ambientes que, uma vez descobertos, possibilitam um outro modo de ver, de viver, de compreender o que de cada vez acontece.

O mundo das coisas passa a ser um mundo de sentido. Os objectos aparentemente em si do quotidiano e desligados de qualquer sentido para além do real, transfiguram-se e passam a existir num horizonte de significado, como se fossem personagens, pessoas, com vida própria.

A ambiguidade das palavras é quase absoluta. O mundo das coisas e o mundo dos significados são impermeáveis se não houver um chamamento e uma produção desse outro mundo. A realidade é filtrada poeticamente por quem faz poesia, não necessariamente por quem escreve frases alinhadas a que chamam poemas. 

A leitura requer por isso não um contacto imediato com o reflexo ou a reacção que temos ao que lemos, mas implica o trabalho lento, feito em esforço e agonia, um trabalho de desconstrução ou arqueologia que nos pode levar a anular a distância entre o imediato e primário e o que se encontra desmaiado ou adormecido no interior da película. E assim coincidir a leitura pode fazer-nos coincidir com o abismo.

 Acordar dessa dimensão leva a desviar “o olhar na direcção da rua”. Somos atirados para “o fosso onde se perderam as nobilíssimas coisas imaginadas pelas crianças doces”. É o horizonte descrito como o “pano de fundo de breves alegrias” onde vivemos. E quem encontramos é “gente condenada a uma tristeza perene”.

É ainda no contexto de aproximação ao processo e método de instalação do ponto de vista poético que podemos compreender a coexistência de mundos paralelos e de dimensões incomensuráveis que permitem uma experiência linguística que provoca perplexidade.

Logo no poema de abertura do livro, “Num refúgio da sombra”, percebemos o carácter incomensurável do ponto de vista poético constituído como forma de vida.

“Estou aqui a mais e em nenhures a menos, desinflei pelas costas” ou “a eternidade dá-me sono”.

É aqui que a polissemia permite vasos comunicantes entre realidades situadas em campos de sentido absolutamente apartados entre si:

“Queijo? Sim, pode ser. Isso e a lua na mão esquerda, por favor, e um pincel extremamente fino, para alindar-lhe a boca”. Ou “meia” pode ser de leite, estar no pé, ser meia lua ou meia maratona. (14)

É também aqui que lugares em sítios contrários se contagiam e o infinitamente grande se reduz ao infinitesimal e vice versa o infinitesimal se expande a dimensões macro-cósmicas.

O horizonte poético permite compreender

“vozes que vendem ilusões bíblicas às raparigas que olham para o tecto como se fosse o chão”, onde a “sombra” que é o próprio “foge até ao rio inalcançável que nasce no tronco de uma árvore enorme e morre no buraco de um prego desaparecido”

e a grandeza do conceito de si próprio na verdade apenas se faz anunciar

“fazendo soar os sinos dalgum pequeno campanário de algibeira”.

É no contexto da possibilidade de esconjurar uma atmosfera poética, na verdade, no interior ou na presença intrínseca desse mesmo horizonte, que podemos esboçar o mapa a estudar pela geografia do sentido da facticidade humana. Mas ao falar-se de geografia, mesmo que metaforicamente, temos de ter em atenção que a hipótese interpretativa resulta num estudo de fronteiras que se alteram ao longo da história e que são habitadas por povos diferentes bem como das modificações morfológicas das costas da terra.

Aqui porém a geografia tem em vista o carácter mutante da vida humana no mundo. A nossa relação com a vida de que somos portadores e com os outros também portadores de vida é o plano de fundo que corresponde a uma das manifestações da película entre o olhar e a tela de que se falou.

A geografia do sentido, a poética da facticidade, tem como objecto o itinerário peculiar da odisseia que é cada vida humana, uma odisseia não para um sítio, porquanto não nos deslocamos no espaço, mas uma viagem para o próprio de cada um de nós e que constitui a própria paisagem do mundo que habitamos, o modo de sermos uns com os outros e nos encontramos no mundo.

O sentido que habitualmente imputamos aos estados do caminho da vida está orientado por uma compreensão de possibilidade de hipertrofia, de melhoria cada vez maior da condição de vida, de alcance de objectivos sempre maiores a que nos propomos, nas diversas habilitações a que nos candidatamos: literárias, desportivas, políticas, financeiras, afectivas, emocionais. A ânsia e a aspiração incendeiam-se por uma falta constitutiva que se sente do que falta, do que é decisivo e dá importância a tudo.

Mas a maneira de viver a queda na facticidade não tem contacto com este darwinismo existencial, na verdade, é totalmente inadaptada, mais do que isso não se percebe como subsiste.

O contacto com o superlativo e a possibilidade de uma hipertrofia absoluta de tudo o que somos é o contacto com a possibilidade perdida, com a derrota, com o cansaço, com a insónia, com a desilusão e o desamparo. Perda, derrota, desilusão e desamparo não são episódicos mas são crónicos.

Esta possibilidade que está a ser considerada é uma vida já acabada quanto à possibilidade e à expectativa, tem o futuro atrás das costas e a subsistência é a de um para sempre nunca mais:

“é como se toda a vida tivéssemos merecido as tábuas de uma ópera e, por azar, a noite tivesse caído caída cedo de mais sobre o mundo”.

Só a partir deste ponto de vista de um ser que, ainda que no encaminhamento da morte a não aguarda já, mas a vê antes apartar-se de si, abandonado na terra de nenhures, se pode compreender como a vida era outrora:

“uma força imoral, uma urgência rara como todas as urgências” que “decompunha espelhos sobre espelhos, encadeava os dias e inventava a serpentina aparentemente interminável de quando se tem ainda a dentição intacta”.

A temporalização desta vida, o tempo característico de quem vive assim é a da precipitação ou da lentidão incomensurável do tédio:

“aceleração contínua, substância mesma de ser uma esquina”.

É assim que

“cumpro repetidamente os passos que vêm de uma parede à outra”. Sendo certo que “a eternidade me dá sono”.

Ou como se lê em Toda a santa noite, o tempo é medido por

“um relógio de cuco, pelo sino de uma igreja, por um carro na avenida”.

O que é cronometrado com objectos do mundo, não necessariamente relógios, é a medula espinhal da vida assim vivida, o coração do tempo:

“a insónia a tomar o peso do desalento e a ternura em fuga por um campo deserto.”

O tempo é indicado pelo “depois”. “Depois, tudo pára”. É o tempo do “degredo”, “esquecimento”, “outrora”, do “desespero ao largo”.

Estas breves indicações aparecem com um sentido tornado completamente transparente em

“Quando os tempos vivos se tornam tempos mortos, vistos com distanciamento e sem ilusões, chegou a hora de deixar de escrever”. “A esperança de vida dos humanos foi calculada com frieza, precisão”. “Por isso, os jogos de cartas nos jardins são os mais generosos cais de embarque para a grande aventura do desaparecimento.”

O desaparecimento permanente é a direcção da poética da facticidade. A vida é a preparação que nos orienta para esse contínuo desaparecimento: omne momentum mors prioris habitus est (Sen. Ep. 58).

A vida não é vivida na expectativa do ganho, da hipertrofia, da configuração do superlativo. Ela é de facto desde sempre a ser a desaparecer.

A dificuldade consiste em perceber como é possível viver sem expectativa, isto é, com todo o património de esperança, expectativa, possibilidade de espera absolutamente esbanjado.

“não conseguir dar por finda a infância, tornar-se homem, aprender a dar corpo a uma ideia”. Embora de vez em quando se “regressa a algumas páginas de esperança sem fundamento prático”, ao casulo em que podia ter qualquer idade, em qualquer tempo, e ser ministro, padre, moleiro, faroleiro, herói, ora romano ora cartaginês.”

Por isso: Sinto saudades do que era suposto ter sido, mas uma lâmina desalmada amputou-me (17).

Os outros são vistos nesta dimensão temporal:

“Agora, és outra pessoa” trabalhada pelo tempo e a distância”, esse outro que agora encontra “encanto na normalidade”, já sem “megalomanias nem paióis de pólvora seca”.

Este outro é a possibilidade perdida de um encantamento com o superlativo. Surge agora a alguém para quem os dias da vida

“são feitos de excessos e vazios e o vazio excessivo é a própria matéria por que pugna o muito tempo em que não calha compor estas vagas linhas sobrepostas a que insistem em chamar poesia, mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono”.

A radical perda de possibilidade da poesia, não da falta de inspiração ou lá o que a trabalha, mas a radical perda da única possibilidade em que a vida pode ser vivida na tela, no reino intermédio, rouba a única possibilidade de surfar na orla.

A conversão de tudo no sentido irreal da poética da facticidade curto circuita-se quando a poética tem a poética focada do ponto de vista da facticidade. O único campo de hipertrofia e de possibilidade de alcance do superlativo, a única maneira de viver a vida ao ser poético colapsa e desmorona-se.

Os dias deixam de ter até essa pequena agenda que permite existir fora da realidade e passar as horas dos dias. Agora nada há.

A grande aventura do desaparecimento é a conciliação com a perda de possibilidades, com o confronto com a realidade da vida no facto do seu desaparecer sem apelo nem agravo, nem alegria avulsa ou episódica com o alinhar de uma única frase ou invocação de contentamento mínimo e breve que seja.

Vive-se num lugar sem lugar:

“numa cela de xisto e cal”. “Um dos grandes poetas da língua e do tempo morre numa cela de xisto e cal e nada pede. Esse era o seu único desejo e habita-o como se fosse mansarda da alma”. “Finalmente, encontrou o seu lugar no mundo, um lugar só seu”. “Talvez pudesse ter sido de outro modo, ter nascido com assa sem a atracção para o pricipício que o tornou celerado e menestrel. Que nada!”

É na consideração da possibilidade de ter sido de maneira diferente, o condicional do que poderia ter sido e não foi ou do que não poderia nunca ter acontecido e foi mesmo o que veio a acontecer que se percebe que a aventura, a odisseia para si, é uma compreensão da morte de todas as coisas e a morte da possibilidade total que ofereciam, uma grande decepção, uma enorme tristeza, sem redenção, já sem palavra que diga da situação em que nos encontramos quando caímos no facto puro e duro de ter de ser sem sentido.

Mas nada disto seria compreendido a não ser em abstracto senão se invocasse qual o sentido do preenchimento da expectativa, qual o carácter do superlativo, qual a verdadeira avenida em direcção a um ser maior, ao preenchimento da máxima possibilidade de cada um de nós.

Todos os conteúdos das nossas vidas, todas as pessoas e nós próprios, encontramo-nos sob pressão de uma possibilidade constitutiva. Aprender a ser quem somos e ser dessa maneira. Sermos os próprios. Quem não compreende não é. Diziam os antigos. O melhor de tudo não ter saúde nem riqueza, nem ser o máximo, o que quer que isso queira dizer. Dizia o epigrama de Delos, o melhor de tudo é encontrar um amor de vida e viver a vida a amar.

A possibilidade radical de uma vida que caiu na facticidade obscurece tudo. O seu lugar é nenhures. O seu tempo o do desaparecimento. Os outros foram perdidos e o próprio existe no isolamento abominável do seu abandono.

Por isso, o final do derradeiro poema de Desvão reacende a possibilidade de futuro e dá compreensão a uma espera possível formulada quase em prece:

o profeta receberá a morte com um abraço lânguido, quase sensual e juntos partirão à procura de um local que àquele se assemelhe, sem que, para merecê-lo, seja preciso viver, que é como quem diz quebrar o coração.


António de Castro Caeiro


ela corria pelo cemitério 
como se os salvasse 
sudários 
mortalhas breves
florescendo jovens 
cadáveres por abrir 
dois mortos somados 
infinitamente 
até à obliteração dos frutos 

as folhas 
inacessíveis 
à queda 

domingo, 23 de outubro de 2016

numa daquelas ruas onde a manhã 
é mais funda e comprida 
trazias um carro pela mão 
e o fundo do mar nos bolsos

lias como se tivesses os olhos fechados 
e o corpo preso nas tuas olheiras, 
insónias vivas 
– creio que me afogo se não as largar

eu já fervia no teu sangue 
como uma âncora 
impossível pensar o espaço 
sem uma linha:
para trás é futuro, para a frente poema
feitas as contas o resultado 
era um lugar novo 
como um abraço oferecido
ao náufrago 

(trazias um braço de papel 
e o outro 
de quem não faltasse)

mas a logística da vida mecânica tortura 
o momento 
dizias que passámos dias inteiros juntos 
onde eu não estava
a tua solidão era um gesto de criança 
um acto de criação nossa 
onde mal cabias sem poder morrer

tu que outrora conseguiste dançar numa pista de silêncio
como se ardesses o tempo
fazendo do corpo uma pira para onde jorravas
o doce osso de um velho agosto 
em prol de um animal melhor
– queimavas setenta camuflagens numa só noite e saías 
fumegando fresquíssimas memórias de guerra 
prontas a contar para esquecer num só verso

restava apenas uma poeira cinza cósmica 
e na sujidade do teu arrasto construíram 
cidades até ao limite exterior do teu nome 
sem nunca conseguir entrar nele por mais 
que uma noite no céu de um país estrangeiro 
e estival

nos meses de verão era proibido usar 
o teu nome em qualquer expressão 
nem para a libertação da angústia 
tudo 
para esconder o dia em que a tua lápide
suporta a terra
ainda hoje atiro o teu nome às pedras 
para o fazer calar 
e desfazer o teu rosto no espaço
que reaparece como uma súplica
em cada sítio que bate 
é a infância 
que vem até ti
um gesto por cumprir 
o inferno por arder 
eterno retorno que começa 
por te cansar 
antes de o entenderes 
sempre tarde demais
talvez a repetição seja a nossa grande criação 
a escolha de um fio 
a cabeça suspensa
e o corpo em queda 
as pessoas como tu caíam em si 
como abismos no firmamento

pois removam-se os escombros 
e tragam-se os santos


Sammuel C. Dayton 
– diários de um corpo menor 

é possível que a austrália seja uma andorinha despenhada 

Catarse ao mar - não simão

dois poemas de Nunes da Rocha – Cova Funda (&etc)

do livro "Cova Funda", &etc 2011





 

Chico Buarque - Geni e o Zepelim (DVD "Na Carreira")

sábado, 22 de outubro de 2016

declaração de costumes para detenção imediata

homem com cicatriz entre 
a penha de frança e s. vicente
vive no sonho de um gato 
e tem outro que nasceu 
do fundo de um poço 
associado conhecido: zorba 
— gato malhado e mesmo 
que assim não fosse
quando deitado tem rabo 
de tamboril 
 
Nestes dias tenho estado sempre sóbrio, mas tive um sonho. Era um sonho em que não estava deprimido – como se nunca tivesse estado – e a sensação era óptima. Tudo tinha três vezes mais significado e não havia momento em que não se celebrasse o sentido épico da existência e do que já tinha existido. Todos tinham nome e belas histórias. E tu estavas lá também – todos. E havia uma espécie de obelisco ao largo de uma baía para onde as pessoas saltavam sem saber que havia água e que tinha sido construído por um fulano chamado Jerry Gnomo – um herói gigante do passado. O filho dele era um rapaz de estatura mínima com o nome David que se dependurava sentado no muro da praia. Não tinha feito nada na vida para além de carregar o nome do pai, de quem era uma amostra de homem. Mas era jovem ainda. Observei-o atentamente e percebi que estava a ver-me como se fosse ao espelho. Eu também era – e sou – uma amostra de homem. Mas ao contrário deles eu sou velho e trôpego e o meu único feito foi – e ainda é – o de carregar a juventude do teu nome. Por vezes pergunto-me se ainda haverá sequer amostra para provar que o resto existe e está escondido num tanque de um sonho onde o corpo só chega de mês a mês para cumprir o ritual de libertação de todas as tuas respirações atrasadas – as que sobreviveram. 
Não me consigo sintonizar com este tempo, o agora, que só pode ser intuído fazendo parte dele absolutamente. Mais do que preso, o que sinto é como se a minha existência fosse operada à distância, remotamente – ou seja, existo remotamente; aqui sou um apenas um projecção holográfica de mim mesmo, sujeito às inevitáveis variações da órbita da consciência. Vejo tudo como uma projecção esbatida, de que consigo apenas ter interpretações e não sentidos: estou necessariamente desfasado, incompleto e distante. O que sinto é como um peixe: esquece-se de si próprio a cada três segundos, repete-se e cansa-se a si e aos outros sem o saber. 
Desconfio que o que me vem neste sonhos é o movimento da água a voltar ao meu pensamento para me ensinar; ou seja, amanhã não me vou lembrar do que estou a sentir. Por isso estou a fazer-te minha testemunha – tu és a água que estava na baía, que ia e regressava secretamente para criar um estado de suspensão por onde se podia chegar ao obelisco, nadando sem saber nadar. 
Na vida real o meu corpo não é um peixe, só o pensamento. O meu corpo lembra-se até demais. Mas ainda bem que não é um peixe: odiaria se a água do banho voltasse para me relembrar todos os movimentos que lavei e que de tanto me arrependo e ainda assim consegui enterrar.
Era isto que na verdade queria dizer com a palavra "amostra".
O passado, mesmo sonhado, é mais nítido porque está armazenado: basta apenas olhar para dentro dele como se fosse agora e conectá-lo à fonte interminável de energia que é a angústia de um sonho teu. 
Na verdade, é mais o passado que me observa como um professor, um professor antiquado e quase obsoleto, mas ainda assim um professor que regressa sempre. Na verdade, ainda tenho muito para aprender. 
Merda, não fiz os trabalhos de casa.


Sammuel C. Dayton
– “Pequenos escritos à minha juventude”

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

poema inédito de Valério Romão

queria ter aprendido essa forma líquida de estar na vida
de ser um osso pintado a caminho da dança
pôr as mãos atrás das costas num gesto largo
para lançar o peito em figura de proa
para ter nas costas o navio crescendo
como uma árvore de fruto e dele
pingar homens bons às centenas
homens de coração exposto à ferida e à temperança
e nunca mais descer à casa do medo
nunca mais tremer
nunca mais declinar em vestígio
fazer do túmulo em chamas a casa do espírito
o cepo glorioso onde todos os dias oferecer as mãos e a testa limpa
ao machado e à vontade da coroa
(seja esta coroa seja esta vontade)
o coração ardendo sempre o coração ardendo livre

Valério Romão
 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

recipe

 oficina do cego — exposição bar irreal 

Aqui não morreu ninguém

 
bombardeira 
memória 
flutuante pela vida 
a realidade tomba 
para longe
terra por cobrir 
navego pela eterna saciedade
não há lugar no mundo 
que me chegue 
— profundidade implacável 
de um movimento 
inexistente


ficarei aqui para sempre 
cuspido 
nas margens interiores 
da cidade insuportável

penumbra irrespirável 
de tão densa 

resta-me uma casa no mar 
à beira do teu nome líquido 
que ainda me enche os pulmões 

estou sem estar 
recidivo sou 
por não te conseguir 
cumprir

terça-feira, 18 de outubro de 2016

a minha carne tem um desígnio*:
– é um duelo de décadas 
entre duas escadas 
disputando a propriedade 
de um cume inútil

Sammuel C. Dayton

*default

At the top of the mountain I keep climbing – André da Loba


André da Loba
At the top of the mountain I keep climbing.
In "A Pedra e o Charco" for @Underdogs10 | 3D Sandstone printing 14 × 14 × 10 cm
| Edition of 5 (For more info please contact info@under-dogs.net)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

o outro lado das flores 
não precisa de floreados  
aqui morrem flores como escadas 
que sobem 

sem ninguém 

o poema é só 
uma face possível de veludo 
na parede do problema 
 
neste lugar que tanto quero

e não pertenço 

estou fechado entre quatro paredes 

grávidas da minha distância 

condenado à espera 


agora percebo 

haverá sempre a dor

vem escondida pela lembrança

de um vestido cor de sossego

Train Song - Feist & Ben Gibbard

domingo, 16 de outubro de 2016

ao fundo da sala o piano fedia
comendo as mãos do seu abusador 
as teclas rangiam como dentes
roendo maquinalmente os dedos
até esfacelar o nervo
e fazer soar
o timbre rigoroso de um homem
em agonia
— eu


Sammuel C. Dayton
diários de um corpo menor 
levo leve
levo breve como foi
possível ser
tão pouco
em tanto tempo
os olhos multados
pela delicadeza dos gestos inefáveis
dos homens nocturnos e inseguros
alguns gestos meus
os olhos todos
sempre os teus

Cidade Nua

dois poemas na revista "Cidade Nua"
 

o zorba do espelho olha para mim
o outro não

sábado, 15 de outubro de 2016

Bebíamos para ultrapassar 
as mazelas da carne 
alheia 
e chegar aos cristais 
conversar 
com a noite nos cabelos 
e nos dedos
sem luz demais a bater-se 
contra o negrume doce 
de uns lábios fechados 
rumorejando versos 
de palavras por dizer
quero – essa forma infante 
de imaginar 
um lugar 
que só depois 
de conhecer 
pela primeira vez, saberei
existia desde sempre
vejo talvez as tuas mãos 
abraçando o meu pensamento
precisas, imensas
desenhando uma boca 
para saber beijar
e dizer o segredo 
da ponta dos teus dedos
quero tudo que tenha 
uma profundidade 
quase impossível
quero visitar-me no teu pensamento 
saber como são as minhas mãos
no teu pensamento
também elas precisas? 
também elas imensas?
limito-me a ver as tuas mãos
que desconheço, 
côncavas e belas 
sobre o meu pensamento
que se torna teu também
e te ofereço assim
como se o inventasses
uma coisa nova
descoberta entre duas pessoas
subindo pelo seu próprio nome 
cumprindo a tradição líquida 
e baptismal 
ofereço-me sobre – e sob 
as tuas mãos
sou um gesto loiro 
no teu regaço 
o mesmo gesto
as tuas mãos circulando 
o meu pensamento inacabado 
para o aconchegar
dar-lhe um endereço
um lugar onde chegar
e voltar despido 
de peso
um pensamento que nasce 
onde lhe queres tocar
as tuas mãos em lugar 
dos meus pulmões 
aí onde deixo de existir 
sou um lugar sem lugar
e voo
tenho dois gatos 
em vez de asas
e um lugar sob as tuas mãos 
para repousar 
onde até os anjos dormem
quase sem respirar
é um lugar onde existe 
ar para os dois e, ainda 
alguns pensamentos 
de grande fôlego e gestos 
concêntricos 
que se podem ler 
um desenho, por exemplo 
uma pintura onde cabemos 
com os nossos dedos e cabelos
uma ideia de poema integral
como um nu
onde cabem duas pessoas
numa só ideia ainda 
por secar 
embora te veja nítida 
nesse gesto 
vejo-te por dentro
como se o visitasse 
depois de o inventar 
no fim das tuas mãos 
enfermeiras mãos 
do meu pensamento 

diário de um corpo menor


a nuvem escura de um poema 

paira à minha frente 

como uma pulga crepitando 

sobre o lençol negro da noite

tento definir os seus breves 
contornos 

entre a certeza de cada salto 
que apodrece

é uma nuvem de sombra sobre 
                           sombra 

mordendo mordendo   sempre 

até chover a sua própria carne 


e um gesto visível 

para quando 

cair sobre a luz
*

no fim a vida foi só 
isto: 
— esperar

pela próxima fome


Samuel C. Dayton 
– diários de um corpo menor 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Scott Walker - Jackie

Saturno a ver TV

 
saturn watching television

poema inédito de Luísa Ribeiro


Um golpe de chuva é                 suficiente
para que me deite    sem estrondo e aí sim          
as lágrimas podem lançar lindas pontes ao futuro           

  uma casa com os filhos ausentes     fica sem tecto


Luísa Ribeiro 

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Poema de Cesare Pavese

Indisciplina 

O bêbado deixa para trás as casas estupefactas.
Nem todos se aventuram a passear bêbados
à luz do sol. Atravessa tranquilo a rua,
e poderia entrar pelas paredes dentro, pois as paredes estão ali.
Só os cães deambulam assim, mas um cão pára
sempre que sente uma cadela e cheira-a cuidadosamente.
O bêbado não vê ninguém, nem mesmo as mulheres.

Na rua, as pessoas que se perturbam ao vê-lo, não se riem
e gostariam que não estivesse ali o bêbado, mas os muitos que tropeçam
ao segui-lo com os olhos voltam a olhar em frente
com uma praga. Passado que foi o bêbado,
toda a rua se move mais lentamente
à luz do sol. E se uma pessoa começa
a correr, é alguém que não o bêbado.
Os outros olham, sem distinguir, o céu e as casas
que nunca deixaram de estar ali, ainda que ninguém as veja.

O bêbado não vê as casas nem o céu,
mas sabe que estão ali, pois num passo pouco firme percorre um espaço
tão claro como as franjas do céu. As pessoas, embaraçadas,
deixam de compreender o que fazem ali as casas,
e as mulheres já não olham para os homens. Têm
todos, dir-se-ia, medo de que de repente a voz
rouca se ponha a cantar e os persiga pelo ar.
Cada casa tem uma porta, mas não vale a pena entrar.
O bêbado não canta, mas mete por uma rua
onde o único obstáculo é o ar. Felizmente
não vai dar ao mar, pois o bêbado,
caminhando tranquilo, entraria também no mar
e, deixando de se ver, prosseguiria no fundo o mesmo caminho.

Cesare Pavese

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

o cais do sodré era uma lança
que trazia espetada há muito tempo

http://olhares.sapo.pt/cais-do-sodre-winter-road-foto5793228.html#

Gold and silver

tenho uma cabeça manufacturada
e um filho fantasma por nascer
a minha memória é uma terra anónima
um pequeno país a sul onde o vento, 
ainda em construção
traz do mar o cheiro quente e silencioso
das coisas que nunca vivi

nesse dia a manhã era uma mãe
branca fria, que te expulsava
de uma história inacabada e interior
agora és um estilhaço que respira
sentado sobre a noite
empenhando o corpo ao sonho
em troca do direito de ocupação
do dia seguinte

é um preço discreto e injusto
uma violência visionária reprimida
que te escava um poço por dentro
sem lhe dar água para esconder a tua sede

de noite o céu desabava numa tormenta
de terra, chovendo em cima de nós
como o futuro certo de um lugar
assegurado debaixo do chão

resta-me a luxúria de um sorriso loiro
nos teus lábios ou o movimento incerto
de um beijo por erguer
que me faz o sono assim, hidráulico
para subir às tuas mãos abertas num gesto 
ininterrupto
e explicar-te a razão geométrica do teu rosto
e de um deus pouco tolerante
com os seus próprios erros

ainda assim
o sol nasce - como um acto de fé
de mãe incerta


Sammuel C. Dayton
- diários de um corpo menor

Jackson C. Frank - Milk And Honey

sábado, 8 de outubro de 2016

um espinho no coração, ursinho leão

a onda era o meu único público na tua escuridão
no seu leito a paisagem rebentava e, sem acordar,
dava-me chapadas como se me bebesse
para me reconhecer
eu crescia de pé, pelo meu próprio pé - pelo menos um só
defronte do seu ventre já distante
e por entre os teus dedos uma chuva miúda
corria de novo pelo meu rosto, dez anos depois
para os derreter
dez anos depois, no vento corria ainda
uma espada por forjar
doce e fugidia como um afecto 
antes da sua primeira ressaca
e, ao fundo da noite, o fragor
de uma bainha líquida e inigualável que, perseguida
se ultrapassava a si própria por dentro para me receber 
eu entrava inteiro no mar 
como se lhe pertencesse
entrava como se nada fosse
era de noite e eu entrava no mar
como se te fodesse
e não tivesse de voltar a terra
- estilhaço de vidro por fundir

para sobreviver


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

cronologia de um subterrâneo

há dias – raros, muito raros – em que acordo quase sem ansiedade e, com uma réstia de honra, consigo tocar no significado aparente da manhã quando ainda estavas presente. acontece normalmente depois de um sonho milenar de antigos almoços, duelos de bravura sensível entre irmãos e assaltos a bancos imaginários para afastar a doença de um emprego; são noites infindas com amigos e lugares que são muitos lugares ao mesmo tempo, encontrados na distância que cai entre um copo e o seguinte, e que terminam sempre com um mergulho prometido em Goa (ou nas águas quentes e aromáticas do café da tua pastelaria preferida em sexton street).
vejo as cadeiras da sala perfeitamente alinhadas e arrumadas, como que pela primeira vez, e a luz entrando livre pela janela como um feriado, permitindo a tão necessária reinvenção humana depois da incessante matança dos dias que levou a que deixasses esta casa como um estrangeiro. já não é de todo possível que a luz te reinvente; e, muito sinceramente, nem sei se é feriado. já nem sinto a diferença dos dias, não tenho esse prazer. toda a mudança me dá ansiedade, por mais pequena que seja e tanto mais se antecipada e rotineira, como os horários, as marcações de calendário, o próprio calendário, e as pessoas. tudo é incerteza repetida e com hora marcada. só prevendo o futuro se consegue atenuar os efeitos destrutivos do seu campo vasto de árvores possíveis, embora imprevisíveis como ondas em alto mar.
e a melhor forma de prever o futuro é vendê-lo à certeza do teu desaparecimento. nenhum oceano navega agora pela tua memória. apenas um fio de água no lençol de que me consigo desenterrar um pouco mais leve em dias como hoje. durante o resto do tempo partilhamos subterrâneos intocáveis entre si, como que em planetas diferentes. nasci no fundo da terra sem saber que te ia renegar da sua superfície. e ainda aqui estou, seguro da minha sentença e carrasco da tua.
mas só pude fazer isso com a tua ajuda. porque me ajudaste tão bem, meu caro?

Sammuel C. Dayton
– pequenos escritos à minha juventude

terça-feira, 4 de outubro de 2016

manual de instruções para não desaparecer

não antecipei a tua morte, sou eu
aquele que devia ter desaparecido
e não tu

sei agora que não era suposto
ter ficado aqui, neste resto de corpo
em vez de ti, como um vício gasto
pela resistência do rosto à água
e à lembrança da dor,
um personagem que sobreviveu aos limites
da sua narrativa e do universo da casa,
do comércio da sede e da propriedade da terra
sobre o corpo
sobrevivi envergando apenas a tua sombra de carne
e o último voo de um pássaro de vento
ferindo as manhãs por dentro

todas essas manhãs que já não me suportam,
curvadas sobre mim
com o peso de uma gravata impotente

— para quê?

porque não me mataste
enquanto era o teu tempo?


Sammuel C. Dayton
– diários de um corpo menor

domingo, 2 de outubro de 2016

​génese da genealogia

uma  casa   morre dentro
e  outra       nasce

uma casa por morrer é um
delta na cidade

sigo pelas suas margens
na direcção do fim da tarde
enquanto as ruas brandem
em uníssono   o lado      o passeio
                          a casa     a parede
                            as coisas  invisíveis

a perda lapidar