domingo, 23 de outubro de 2016

numa daquelas ruas onde a manhã 
é mais funda e comprida 
trazias um carro pela mão 
e o fundo do mar nos bolsos

lias como se tivesses os olhos fechados 
e o corpo preso nas tuas olheiras, 
insónias vivas 
– creio que me afogo se não as largar

eu já fervia no teu sangue 
como uma âncora 
impossível pensar o espaço 
sem uma linha:
para trás é futuro, para a frente poema
feitas as contas o resultado 
era um lugar novo 
como um abraço oferecido
ao náufrago 

(trazias um braço de papel 
e o outro 
de quem não faltasse)

mas a logística da vida mecânica tortura 
o momento 
dizias que passámos dias inteiros juntos 
onde eu não estava
a tua solidão era um gesto de criança 
um acto de criação nossa 
onde mal cabias sem poder morrer

tu que outrora conseguiste dançar numa pista de silêncio
como se ardesses o tempo
fazendo do corpo uma pira para onde jorravas
o doce osso de um velho agosto 
em prol de um animal melhor
– queimavas setenta camuflagens numa só noite e saías 
fumegando fresquíssimas memórias de guerra 
prontas a contar para esquecer num só verso

restava apenas uma poeira cinza cósmica 
e na sujidade do teu arrasto construíram 
cidades até ao limite exterior do teu nome 
sem nunca conseguir entrar nele por mais 
que uma noite no céu de um país estrangeiro 
e estival

nos meses de verão era proibido usar 
o teu nome em qualquer expressão 
nem para a libertação da angústia 
tudo 
para esconder o dia em que a tua lápide
suporta a terra
ainda hoje atiro o teu nome às pedras 
para o fazer calar 
e desfazer o teu rosto no espaço
que reaparece como uma súplica
em cada sítio que bate 
é a infância 
que vem até ti
um gesto por cumprir 
o inferno por arder 
eterno retorno que começa 
por te cansar 
antes de o entenderes 
sempre tarde demais
talvez a repetição seja a nossa grande criação 
a escolha de um fio 
a cabeça suspensa
e o corpo em queda 
as pessoas como tu caíam em si 
como abismos no firmamento

pois removam-se os escombros 
e tragam-se os santos


Sammuel C. Dayton 
– diários de um corpo menor 

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