sábado, 22 de outubro de 2016

Nestes dias tenho estado sempre sóbrio, mas tive um sonho. Era um sonho em que não estava deprimido – como se nunca tivesse estado – e a sensação era óptima. Tudo tinha três vezes mais significado e não havia momento em que não se celebrasse o sentido épico da existência e do que já tinha existido. Todos tinham nome e belas histórias. E tu estavas lá também – todos. E havia uma espécie de obelisco ao largo de uma baía para onde as pessoas saltavam sem saber que havia água e que tinha sido construído por um fulano chamado Jerry Gnomo – um herói gigante do passado. O filho dele era um rapaz de estatura mínima com o nome David que se dependurava sentado no muro da praia. Não tinha feito nada na vida para além de carregar o nome do pai, de quem era uma amostra de homem. Mas era jovem ainda. Observei-o atentamente e percebi que estava a ver-me como se fosse ao espelho. Eu também era – e sou – uma amostra de homem. Mas ao contrário deles eu sou velho e trôpego e o meu único feito foi – e ainda é – o de carregar a juventude do teu nome. Por vezes pergunto-me se ainda haverá sequer amostra para provar que o resto existe e está escondido num tanque de um sonho onde o corpo só chega de mês a mês para cumprir o ritual de libertação de todas as tuas respirações atrasadas – as que sobreviveram. 
Não me consigo sintonizar com este tempo, o agora, que só pode ser intuído fazendo parte dele absolutamente. Mais do que preso, o que sinto é como se a minha existência fosse operada à distância, remotamente – ou seja, existo remotamente; aqui sou um apenas um projecção holográfica de mim mesmo, sujeito às inevitáveis variações da órbita da consciência. Vejo tudo como uma projecção esbatida, de que consigo apenas ter interpretações e não sentidos: estou necessariamente desfasado, incompleto e distante. O que sinto é como um peixe: esquece-se de si próprio a cada três segundos, repete-se e cansa-se a si e aos outros sem o saber. 
Desconfio que o que me vem neste sonhos é o movimento da água a voltar ao meu pensamento para me ensinar; ou seja, amanhã não me vou lembrar do que estou a sentir. Por isso estou a fazer-te minha testemunha – tu és a água que estava na baía, que ia e regressava secretamente para criar um estado de suspensão por onde se podia chegar ao obelisco, nadando sem saber nadar. 
Na vida real o meu corpo não é um peixe, só o pensamento. O meu corpo lembra-se até demais. Mas ainda bem que não é um peixe: odiaria se a água do banho voltasse para me relembrar todos os movimentos que lavei e que de tanto me arrependo e ainda assim consegui enterrar.
Era isto que na verdade queria dizer com a palavra "amostra".
O passado, mesmo sonhado, é mais nítido porque está armazenado: basta apenas olhar para dentro dele como se fosse agora e conectá-lo à fonte interminável de energia que é a angústia de um sonho teu. 
Na verdade, é mais o passado que me observa como um professor, um professor antiquado e quase obsoleto, mas ainda assim um professor que regressa sempre. Na verdade, ainda tenho muito para aprender. 
Merda, não fiz os trabalhos de casa.


Sammuel C. Dayton
– “Pequenos escritos à minha juventude”

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