quinta-feira, 24 de novembro de 2016

de uma janela irreversível

uma montanha vazia paira 
sobre mim, agonizante 
chorando a terra amputada 
que lhe dói 
como se à cruz doesse 
o cristo 

assim tocavas muito além 
da ponta dos teus dedos 
aqueles que vieste a reconhecer 
só mais tarde 
o sangue, esse, o mesmo 
desde sempre 
os ossos de ferro dispondo 
verticalmente os limites do caminho 
que te encarcerou dentro de um pensamento demasiado alto 
por habitar

queria poder dar-te uma escada 
para inverter o pensamento  
tornar mais alta a distância 
abreviar a infância inacabada 
e o desaparecimento de todas as possibilidades

agora cada gota é um estilhaço líquido preso na vontade de te ver
por mais que os meus olhos sejam apenas 
os restos de um gesto por enterrar 
reservado num sonho de praias incertas 
onde as pessoas se despediam 
da tua voz proibida 
soerguidas nas toalhas 
como sudários em flor 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O silêncio, de Philip Schultz

para RJ

Tu ligavas sempre tarde e bêbado,
a tua voz exuberante de dor,
Eu tapado a sonhar,
escutava-te como se fosses um fantasma.

Hoje à noite um amigo ligou para dizer que o teu corpo
foi encontrado no teu apartamento, onde
já estavas morto havia alguns dias. Tinhas perdido o teu emprego,
parado de escrever, não vias ninguém há semanas.
Foi coração, disse ele. A bebida tinha-te destruído.

Conhecemo-nos numa cidade universitária,
Onde tivemos os nosso primeiros empregos a ensinar,
Os poemas fluíam de uma dor consagrada
Por mito e álcool. Eu invejava a maneira
como as mulheres olhavam para ti:— um urso cego de raiva,
que despedaçava a madeira cada vez mais tenebrosa.

Uma vez trocamos poemas como quem troca fotos de mulheres
cuja beleza punha à prova a fé em Deus. "Lê este
sobre como a amizade entre os jovens não pode durar,
há-de arrancar-te o coração ao peito! '

Uma vez ligaste para dizer que J se tinha ido embora,
a dor ficou presa à tua garganta como uma lâmina de barbear.
Uma mulher estava a chamar-me de volta para a cama
e eu disse-te que te ligava depois. Mas nunca o fiz.

O cheiro profundo e desamparado a musgo e pinheiro
Nas traseiras da tua casa de pedra, tu dedilhando
e cantando Lorca, Vallejo, De Andrade,
como se cada sílaba soubesse a sangue,
como se tu tivesses todo o tempo do mundo. . .

Tu sabias bem que os teus anjos te tinham amado
mas também sabias que eles abandonariam

quem quer que fosse que não pudesse ser salvo.

Philip Schultz
tradução de António de Castro Caeiro

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Primeira epístola à minha juventude – Sammuel C. Dayton

Ficarias surpreso se viesses a saber que hoje vivemos tempos de honestidade — interior, claro. Jamais conseguiria ser inteiramente honesto para com os outros. Não sou dado ao trabalho em equipa de gabinetes e muito menos sou um desses nudistas sentimentais que pululam nas praias da literatura do verão e do seu verso excessivamente claro.
Talvez seja por isso que te escrevo. A realidade exterior, a que os outros habitam — e me habitam, na verdade — é como água até ao meu pescoço estanque: não entra, mas não me deixa mexer bem. Não os censuro, porém; agora já não.
Dizem que a única censura do homem é o tempo e que dele nasce a sua verdadeira perversidade e castigo: a juventude, a nossa e a dos outros e, ao mesmo tempo, onde ela não está — um oxímoro do corpo em si mesmo, sincronia de um século feito de carne, quase inteiro, e que inevitavelmente acabará em breve (mas não sem que os seus devidos prazeres tenham sido liquidados e cumpridos com todo o regalo).
Quero que saibas que a culpa foi sempre minha. Não houve falsas esperanças, só dúvida e o falhanço de algumas certezas que vieram a revelar-se terroristas brancos infiltrados nos meus cabelos ralos pela idade, pelo tempo e falta dele, pelas preocupações e outras tantas pressões: o contrato de empresa, o seu cumprimento, o inadimplemento, o açafate cheio de dúvidas para passar a ferro, o cheiro fétido do vinho de ontem ainda ensopado nas roupas pedindo perdão ao corpo e à cama inexorável; aliás, latejando pelo perdão de alguém que se importe. 
Por esse perdão, pelo tenebroso medo do desespero da solidão e da culpa, arrisquei tombar pela vereda irreversível dos mecanismos das relações que morriam à nascença, vítimas da projecção —essa perigosa arma de troca de afectos putativos.
E de fracasso em fracasso, como um funcionário, fui conquistando sem querer (mas com mérito) a vontade de desistir — se é que se pode chamar vontade ao cansaço e surdez da alma. Paz a si própria — disse o corpo.



Sammuel C. Dayton