quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Primeira epístola à minha juventude – Sammuel C. Dayton

Ficarias surpreso se viesses a saber que hoje vivemos tempos de honestidade — interior, claro. Jamais conseguiria ser inteiramente honesto para com os outros. Não sou dado ao trabalho em equipa de gabinetes e muito menos sou um desses nudistas sentimentais que pululam nas praias da literatura do verão e do seu verso excessivamente claro.
Talvez seja por isso que te escrevo. A realidade exterior, a que os outros habitam — e me habitam, na verdade — é como água até ao meu pescoço estanque: não entra, mas não me deixa mexer bem. Não os censuro, porém; agora já não.
Dizem que a única censura do homem é o tempo e que dele nasce a sua verdadeira perversidade e castigo: a juventude, a nossa e a dos outros e, ao mesmo tempo, onde ela não está — um oxímoro do corpo em si mesmo, sincronia de um século feito de carne, quase inteiro, e que inevitavelmente acabará em breve (mas não sem que os seus devidos prazeres tenham sido liquidados e cumpridos com todo o regalo).
Quero que saibas que a culpa foi sempre minha. Não houve falsas esperanças, só dúvida e o falhanço de algumas certezas que vieram a revelar-se terroristas brancos infiltrados nos meus cabelos ralos pela idade, pelo tempo e falta dele, pelas preocupações e outras tantas pressões: o contrato de empresa, o seu cumprimento, o inadimplemento, o açafate cheio de dúvidas para passar a ferro, o cheiro fétido do vinho de ontem ainda ensopado nas roupas pedindo perdão ao corpo e à cama inexorável; aliás, latejando pelo perdão de alguém que se importe. 
Por esse perdão, pelo tenebroso medo do desespero da solidão e da culpa, arrisquei tombar pela vereda irreversível dos mecanismos das relações que morriam à nascença, vítimas da projecção —essa perigosa arma de troca de afectos putativos.
E de fracasso em fracasso, como um funcionário, fui conquistando sem querer (mas com mérito) a vontade de desistir — se é que se pode chamar vontade ao cansaço e surdez da alma. Paz a si própria — disse o corpo.



Sammuel C. Dayton 

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