quinta-feira, 29 de setembro de 2016

as varandas ardiam nos meus olhos 
como terraços em competição
as suas chamas flutuavam, invisíveis
sobre histórias de vizinhos insaciáveis

por detrás dos terraços estendidos
como um alfaiate na água
as suas pernas cruzavam as tardes
para interceptar a água fria que vinha do penhasco
inacabado

nós jogávamos às crianças
juntos construíamos a sombra de um adulto
exemplar
mas o sapo comia a terra dos nossos olhos
para construir o seu barco negro e mínimo
atirado ao mar

era um mar japonês
a música vinha aos quadradinhos
solta pela ruína de um rochedo
bombardeado pelo vento
no seu leito a areia absorvia os contornos do meu rosto 
e eu era livre na sua mutabilidade 
como se me dissolvesse nela

brincávamos aos adultos para fingir que ainda éramos jovens
eu dizia que ia ser escritor para te conseguir entender um dia,
explicar-te quem és
tu respondias que certas palavras – como certas pessoas
são apócrifas: 
quanto mais se mergulha no seu sentido,
mais elas deixam de existir

no regresso a casa, depois do caminho de terra revelado
pelo sol da tarde
os teus seios morenos – apenas perceptíveis à luxúria da minha imaginação – 
ainda puxavam os meus dedos como flechas tensas pela vontade 
de um arco distante

o meu desejo era um minuto escondido às quatro da tarde e outro
às quatro da manhã – jurei que me chamavas por vezes
com os passos leves de uma garganta sonhada em segredo
onde cabiam ambas as nossas respirações
trazias melancia e água fresca com as cicatrizes da tua sede
na camisola por despir
e eu acordava sempre às quatro da manhã
para me despedir

ainda hoje acordo escrevendo como se desenhasse
a tarde no teu rosto depois do mar
para o conseguir reconhecer

Sammuel C. Dayton
– diários de um corpo menor

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