domingo, 11 de dezembro de 2016

incipiente, aprendia a oficina da impreparação
para o próximo encontro com o mar 
sabia apenas 
que os gestos acessórios da remada 
eram como tendas montadas 
antes da onda ou a segunda vida 
de foster wallace

ainda assim 
a contemplação da vontade 
era um prazer digno 
de inferno por arder
cortina intransponível 
e translúcida 
onde só os teus gestos me pareciam reais 

mas havia um parque de estacionamento 
pago 
na violência do meu pensamento 
depois de solto pelo álcool 

nele estavam guardados os pedaços 
de carvão gerados pelo excesso 
de movimento 
queimado à superfície 

voltar 
era sempre
uma reutilização, a não ser

que o mar regressasse
às cavalitas de um deus de sol
e voltasse da sua infância
trazendo consigo, pela primeira vez
a possibilidade de a terminar 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

de uma janela irreversível

uma montanha vazia paira 
sobre mim, agonizante 
chorando a terra amputada 
que lhe dói 
como se à cruz doesse 
o cristo 

assim tocavas muito além 
da ponta dos teus dedos 
aqueles que vieste a reconhecer 
só mais tarde 
o sangue, esse, o mesmo 
desde sempre 
os ossos de ferro dispondo 
verticalmente os limites do caminho 
que te encarcerou dentro de um pensamento demasiado alto 
por habitar

queria poder dar-te uma escada 
para inverter o pensamento  
tornar mais alta a distância 
abreviar a infância inacabada 
e o desaparecimento de todas as possibilidades

agora cada gota é um estilhaço líquido preso na vontade de te ver
por mais que os meus olhos sejam apenas 
os restos de um gesto por enterrar 
reservado num sonho de praias incertas 
onde as pessoas se despediam 
da tua voz proibida 
soerguidas nas toalhas 
como sudários em flor 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O silêncio, de Philip Schultz

para RJ

Tu ligavas sempre tarde e bêbado,
a tua voz exuberante de dor,
Eu tapado a sonhar,
escutava-te como se fosses um fantasma.

Hoje à noite um amigo ligou para dizer que o teu corpo
foi encontrado no teu apartamento, onde
já estavas morto havia alguns dias. Tinhas perdido o teu emprego,
parado de escrever, não vias ninguém há semanas.
Foi coração, disse ele. A bebida tinha-te destruído.

Conhecemo-nos numa cidade universitária,
Onde tivemos os nosso primeiros empregos a ensinar,
Os poemas fluíam de uma dor consagrada
Por mito e álcool. Eu invejava a maneira
como as mulheres olhavam para ti:— um urso cego de raiva,
que despedaçava a madeira cada vez mais tenebrosa.

Uma vez trocamos poemas como quem troca fotos de mulheres
cuja beleza punha à prova a fé em Deus. "Lê este
sobre como a amizade entre os jovens não pode durar,
há-de arrancar-te o coração ao peito! '

Uma vez ligaste para dizer que J se tinha ido embora,
a dor ficou presa à tua garganta como uma lâmina de barbear.
Uma mulher estava a chamar-me de volta para a cama
e eu disse-te que te ligava depois. Mas nunca o fiz.

O cheiro profundo e desamparado a musgo e pinheiro
Nas traseiras da tua casa de pedra, tu dedilhando
e cantando Lorca, Vallejo, De Andrade,
como se cada sílaba soubesse a sangue,
como se tu tivesses todo o tempo do mundo. . .

Tu sabias bem que os teus anjos te tinham amado
mas também sabias que eles abandonariam

quem quer que fosse que não pudesse ser salvo.

Philip Schultz
tradução de António de Castro Caeiro

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Primeira epístola à minha juventude – Sammuel C. Dayton

Ficarias surpreso se viesses a saber que hoje vivemos tempos de honestidade — interior, claro. Jamais conseguiria ser inteiramente honesto para com os outros. Não sou dado ao trabalho em equipa de gabinetes e muito menos sou um desses nudistas sentimentais que pululam nas praias da literatura do verão e do seu verso excessivamente claro.
Talvez seja por isso que te escrevo. A realidade exterior, a que os outros habitam — e me habitam, na verdade — é como água até ao meu pescoço estanque: não entra, mas não me deixa mexer bem. Não os censuro, porém; agora já não.
Dizem que a única censura do homem é o tempo e que dele nasce a sua verdadeira perversidade e castigo: a juventude, a nossa e a dos outros e, ao mesmo tempo, onde ela não está — um oxímoro do corpo em si mesmo, sincronia de um século feito de carne, quase inteiro, e que inevitavelmente acabará em breve (mas não sem que os seus devidos prazeres tenham sido liquidados e cumpridos com todo o regalo).
Quero que saibas que a culpa foi sempre minha. Não houve falsas esperanças, só dúvida e o falhanço de algumas certezas que vieram a revelar-se terroristas brancos infiltrados nos meus cabelos ralos pela idade, pelo tempo e falta dele, pelas preocupações e outras tantas pressões: o contrato de empresa, o seu cumprimento, o inadimplemento, o açafate cheio de dúvidas para passar a ferro, o cheiro fétido do vinho de ontem ainda ensopado nas roupas pedindo perdão ao corpo e à cama inexorável; aliás, latejando pelo perdão de alguém que se importe. 
Por esse perdão, pelo tenebroso medo do desespero da solidão e da culpa, arrisquei tombar pela vereda irreversível dos mecanismos das relações que morriam à nascença, vítimas da projecção —essa perigosa arma de troca de afectos putativos.
E de fracasso em fracasso, como um funcionário, fui conquistando sem querer (mas com mérito) a vontade de desistir — se é que se pode chamar vontade ao cansaço e surdez da alma. Paz a si própria — disse o corpo.



Sammuel C. Dayton 

domingo, 30 de outubro de 2016

três poemas de José Manuel Simões

do livro "Sobras Completas", uma antologia única de José Manuel Simões (Lisboa, 1934 – Paris, 1999), um dos menos conhecidos poetas do grupo do Café Gelo. Ed. abysmo

 

 
 
 

 

 

mymesis


o vento    placenta   psicadélica
de um gesto voador      
cabriola 
tentando roubar da alta planície  
dores inalcançáveis de tão sós 
brancas terras finas espelhando 
a espuma fágica do seu limite 
em gestação 
o país era um rosto esquivo e recente 
virado para o beco de um oceano 
que te amanhecia na pele 
com a secura de um sopro
estalado pelo sol 
em pleno gorongosa 
o rugido de um leão 
deixado para trás 
nessa 
invenção da distância – única definição 
de amor que alguma vez consegui
compreender e assim te dei 
por completo e sem forma
de desistir 

sábado, 29 de outubro de 2016

retrato póstumo

                                                                  ao gato piruças

um quadrado de terra na cidade
um verão de amendoeira
uma flor, uma pedra luminescente no peito 
da igreja
a respiração ainda quente de uma boca derrotada
um dia cruel
um novo homem que nasce do fim
um gato de sombra que nasceu da invenção 
de uma escada
e a sombra de um gato que morreu 
como a divisão de uma casa
— a dor à volta da qual tudo se constrói

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

dois poemas de Dylan Thomas

escolhidos pelo Nuno Miguel Guedes a partir da antologia publicada pela Assírio & Alvim – "a mão que assina este papel" – no centésimo segundo aniversário do seu nascimento 

"A luz irrompe onde nenhum sol brilha"

 

 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

o espectáculo da febre 
era um céu aberto 
dentro de uma laranja 
os olhos esticados como dedos 
despedaçavam o vento 
no teu rosto, quieto 
fervendo até se abrir na boca
a foz de um pensamento 
onde o precipício – livre
mastigava lentamente os homens
que caíam sem causa
pelo dilúvio

de uma qualquer deusa

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

António de Castro Caeiro lê "Desvão", de Miguel Martins

não-edições



















Ein Buch ist ein Spiegel, wenn ein Affe hineinguckt, so kann freilich kein Apostel heraus sehen.

Georg Christoph Lichtenberg

O adágio de Lichtenber aplica-se com a sua força máxima à poesia de Miguel Martins neste seu Desvão. Os treze poemas que compõe o livro podem ser lidos isoladamente. Quem leu alguns avulso no seu Blog terá feito essa experiência. Mas os treze são também uma unidade orgânica. Apresentam elementos complexos de uma poética da facticidade.

Podemos identificar temas que estão sob foco poético em cada um dos poemas. Mas há uma mesma identidade trama temática bem como operadores poéticos. A poesia abre o olhar sobre si própria e não apenas sobre a vida com a qual lida, a que se reporta, de onde parte.

Em “Há, entre a tela e o olhar, uma película” encontramos um pensamento sobre este ponto de vista ou perspectiva a partir dos quais o objecto de cada poema é considerado. Melhor, percebemos aí como toda a realidade é isolada, vista e interpretada, a partir de um ponto de vista que não está disponível habitualmente, possa embora encontrar-se implícito de forma latente, à espera da possibilidade de ser inaugurado e ficar aceso.

A realidade poética não é apenas aquela que se encontra expressa em cada poema, em cada verso, em cada palavra. Antes, toda e qualquer realidade, os outros que aí se encontram. As praias. Os quartos. As ruas. Os sinos. Os relógios. Os carros que passam na avenida. Lágrimas e ostras. Bem como a entidade complexa a que chamamos nós próprios e as relações que se estabelecem com os outros e com o mundo. Toda e qualquer realidade é filtrada pelo olhar excessivo do ponto de vista poético.

“Entre a tela e o olhar há uma película mais ou menos fina, mais ou menos espessa, a que costumamos chamar, arte, como se entre a vida e os trovões, a insinuação de uma matéria tépida pudesse aliviar-nos da fraqueza e do medo.” (12)

A película é um campo de forças aparentemente inerte e desligado, isto é, ainda não accionado. A poesia esconjura-a. Olhar e tela são também vistos através da película. Tudo encontra-se envolvido por uma atmosfera e por ambientes que, uma vez descobertos, possibilitam um outro modo de ver, de viver, de compreender o que de cada vez acontece.

O mundo das coisas passa a ser um mundo de sentido. Os objectos aparentemente em si do quotidiano e desligados de qualquer sentido para além do real, transfiguram-se e passam a existir num horizonte de significado, como se fossem personagens, pessoas, com vida própria.

A ambiguidade das palavras é quase absoluta. O mundo das coisas e o mundo dos significados são impermeáveis se não houver um chamamento e uma produção desse outro mundo. A realidade é filtrada poeticamente por quem faz poesia, não necessariamente por quem escreve frases alinhadas a que chamam poemas. 

A leitura requer por isso não um contacto imediato com o reflexo ou a reacção que temos ao que lemos, mas implica o trabalho lento, feito em esforço e agonia, um trabalho de desconstrução ou arqueologia que nos pode levar a anular a distância entre o imediato e primário e o que se encontra desmaiado ou adormecido no interior da película. E assim coincidir a leitura pode fazer-nos coincidir com o abismo.

 Acordar dessa dimensão leva a desviar “o olhar na direcção da rua”. Somos atirados para “o fosso onde se perderam as nobilíssimas coisas imaginadas pelas crianças doces”. É o horizonte descrito como o “pano de fundo de breves alegrias” onde vivemos. E quem encontramos é “gente condenada a uma tristeza perene”.

É ainda no contexto de aproximação ao processo e método de instalação do ponto de vista poético que podemos compreender a coexistência de mundos paralelos e de dimensões incomensuráveis que permitem uma experiência linguística que provoca perplexidade.

Logo no poema de abertura do livro, “Num refúgio da sombra”, percebemos o carácter incomensurável do ponto de vista poético constituído como forma de vida.

“Estou aqui a mais e em nenhures a menos, desinflei pelas costas” ou “a eternidade dá-me sono”.

É aqui que a polissemia permite vasos comunicantes entre realidades situadas em campos de sentido absolutamente apartados entre si:

“Queijo? Sim, pode ser. Isso e a lua na mão esquerda, por favor, e um pincel extremamente fino, para alindar-lhe a boca”. Ou “meia” pode ser de leite, estar no pé, ser meia lua ou meia maratona. (14)

É também aqui que lugares em sítios contrários se contagiam e o infinitamente grande se reduz ao infinitesimal e vice versa o infinitesimal se expande a dimensões macro-cósmicas.

O horizonte poético permite compreender

“vozes que vendem ilusões bíblicas às raparigas que olham para o tecto como se fosse o chão”, onde a “sombra” que é o próprio “foge até ao rio inalcançável que nasce no tronco de uma árvore enorme e morre no buraco de um prego desaparecido”

e a grandeza do conceito de si próprio na verdade apenas se faz anunciar

“fazendo soar os sinos dalgum pequeno campanário de algibeira”.

É no contexto da possibilidade de esconjurar uma atmosfera poética, na verdade, no interior ou na presença intrínseca desse mesmo horizonte, que podemos esboçar o mapa a estudar pela geografia do sentido da facticidade humana. Mas ao falar-se de geografia, mesmo que metaforicamente, temos de ter em atenção que a hipótese interpretativa resulta num estudo de fronteiras que se alteram ao longo da história e que são habitadas por povos diferentes bem como das modificações morfológicas das costas da terra.

Aqui porém a geografia tem em vista o carácter mutante da vida humana no mundo. A nossa relação com a vida de que somos portadores e com os outros também portadores de vida é o plano de fundo que corresponde a uma das manifestações da película entre o olhar e a tela de que se falou.

A geografia do sentido, a poética da facticidade, tem como objecto o itinerário peculiar da odisseia que é cada vida humana, uma odisseia não para um sítio, porquanto não nos deslocamos no espaço, mas uma viagem para o próprio de cada um de nós e que constitui a própria paisagem do mundo que habitamos, o modo de sermos uns com os outros e nos encontramos no mundo.

O sentido que habitualmente imputamos aos estados do caminho da vida está orientado por uma compreensão de possibilidade de hipertrofia, de melhoria cada vez maior da condição de vida, de alcance de objectivos sempre maiores a que nos propomos, nas diversas habilitações a que nos candidatamos: literárias, desportivas, políticas, financeiras, afectivas, emocionais. A ânsia e a aspiração incendeiam-se por uma falta constitutiva que se sente do que falta, do que é decisivo e dá importância a tudo.

Mas a maneira de viver a queda na facticidade não tem contacto com este darwinismo existencial, na verdade, é totalmente inadaptada, mais do que isso não se percebe como subsiste.

O contacto com o superlativo e a possibilidade de uma hipertrofia absoluta de tudo o que somos é o contacto com a possibilidade perdida, com a derrota, com o cansaço, com a insónia, com a desilusão e o desamparo. Perda, derrota, desilusão e desamparo não são episódicos mas são crónicos.

Esta possibilidade que está a ser considerada é uma vida já acabada quanto à possibilidade e à expectativa, tem o futuro atrás das costas e a subsistência é a de um para sempre nunca mais:

“é como se toda a vida tivéssemos merecido as tábuas de uma ópera e, por azar, a noite tivesse caído caída cedo de mais sobre o mundo”.

Só a partir deste ponto de vista de um ser que, ainda que no encaminhamento da morte a não aguarda já, mas a vê antes apartar-se de si, abandonado na terra de nenhures, se pode compreender como a vida era outrora:

“uma força imoral, uma urgência rara como todas as urgências” que “decompunha espelhos sobre espelhos, encadeava os dias e inventava a serpentina aparentemente interminável de quando se tem ainda a dentição intacta”.

A temporalização desta vida, o tempo característico de quem vive assim é a da precipitação ou da lentidão incomensurável do tédio:

“aceleração contínua, substância mesma de ser uma esquina”.

É assim que

“cumpro repetidamente os passos que vêm de uma parede à outra”. Sendo certo que “a eternidade me dá sono”.

Ou como se lê em Toda a santa noite, o tempo é medido por

“um relógio de cuco, pelo sino de uma igreja, por um carro na avenida”.

O que é cronometrado com objectos do mundo, não necessariamente relógios, é a medula espinhal da vida assim vivida, o coração do tempo:

“a insónia a tomar o peso do desalento e a ternura em fuga por um campo deserto.”

O tempo é indicado pelo “depois”. “Depois, tudo pára”. É o tempo do “degredo”, “esquecimento”, “outrora”, do “desespero ao largo”.

Estas breves indicações aparecem com um sentido tornado completamente transparente em

“Quando os tempos vivos se tornam tempos mortos, vistos com distanciamento e sem ilusões, chegou a hora de deixar de escrever”. “A esperança de vida dos humanos foi calculada com frieza, precisão”. “Por isso, os jogos de cartas nos jardins são os mais generosos cais de embarque para a grande aventura do desaparecimento.”

O desaparecimento permanente é a direcção da poética da facticidade. A vida é a preparação que nos orienta para esse contínuo desaparecimento: omne momentum mors prioris habitus est (Sen. Ep. 58).

A vida não é vivida na expectativa do ganho, da hipertrofia, da configuração do superlativo. Ela é de facto desde sempre a ser a desaparecer.

A dificuldade consiste em perceber como é possível viver sem expectativa, isto é, com todo o património de esperança, expectativa, possibilidade de espera absolutamente esbanjado.

“não conseguir dar por finda a infância, tornar-se homem, aprender a dar corpo a uma ideia”. Embora de vez em quando se “regressa a algumas páginas de esperança sem fundamento prático”, ao casulo em que podia ter qualquer idade, em qualquer tempo, e ser ministro, padre, moleiro, faroleiro, herói, ora romano ora cartaginês.”

Por isso: Sinto saudades do que era suposto ter sido, mas uma lâmina desalmada amputou-me (17).

Os outros são vistos nesta dimensão temporal:

“Agora, és outra pessoa” trabalhada pelo tempo e a distância”, esse outro que agora encontra “encanto na normalidade”, já sem “megalomanias nem paióis de pólvora seca”.

Este outro é a possibilidade perdida de um encantamento com o superlativo. Surge agora a alguém para quem os dias da vida

“são feitos de excessos e vazios e o vazio excessivo é a própria matéria por que pugna o muito tempo em que não calha compor estas vagas linhas sobrepostas a que insistem em chamar poesia, mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono”.

A radical perda de possibilidade da poesia, não da falta de inspiração ou lá o que a trabalha, mas a radical perda da única possibilidade em que a vida pode ser vivida na tela, no reino intermédio, rouba a única possibilidade de surfar na orla.

A conversão de tudo no sentido irreal da poética da facticidade curto circuita-se quando a poética tem a poética focada do ponto de vista da facticidade. O único campo de hipertrofia e de possibilidade de alcance do superlativo, a única maneira de viver a vida ao ser poético colapsa e desmorona-se.

Os dias deixam de ter até essa pequena agenda que permite existir fora da realidade e passar as horas dos dias. Agora nada há.

A grande aventura do desaparecimento é a conciliação com a perda de possibilidades, com o confronto com a realidade da vida no facto do seu desaparecer sem apelo nem agravo, nem alegria avulsa ou episódica com o alinhar de uma única frase ou invocação de contentamento mínimo e breve que seja.

Vive-se num lugar sem lugar:

“numa cela de xisto e cal”. “Um dos grandes poetas da língua e do tempo morre numa cela de xisto e cal e nada pede. Esse era o seu único desejo e habita-o como se fosse mansarda da alma”. “Finalmente, encontrou o seu lugar no mundo, um lugar só seu”. “Talvez pudesse ter sido de outro modo, ter nascido com assa sem a atracção para o pricipício que o tornou celerado e menestrel. Que nada!”

É na consideração da possibilidade de ter sido de maneira diferente, o condicional do que poderia ter sido e não foi ou do que não poderia nunca ter acontecido e foi mesmo o que veio a acontecer que se percebe que a aventura, a odisseia para si, é uma compreensão da morte de todas as coisas e a morte da possibilidade total que ofereciam, uma grande decepção, uma enorme tristeza, sem redenção, já sem palavra que diga da situação em que nos encontramos quando caímos no facto puro e duro de ter de ser sem sentido.

Mas nada disto seria compreendido a não ser em abstracto senão se invocasse qual o sentido do preenchimento da expectativa, qual o carácter do superlativo, qual a verdadeira avenida em direcção a um ser maior, ao preenchimento da máxima possibilidade de cada um de nós.

Todos os conteúdos das nossas vidas, todas as pessoas e nós próprios, encontramo-nos sob pressão de uma possibilidade constitutiva. Aprender a ser quem somos e ser dessa maneira. Sermos os próprios. Quem não compreende não é. Diziam os antigos. O melhor de tudo não ter saúde nem riqueza, nem ser o máximo, o que quer que isso queira dizer. Dizia o epigrama de Delos, o melhor de tudo é encontrar um amor de vida e viver a vida a amar.

A possibilidade radical de uma vida que caiu na facticidade obscurece tudo. O seu lugar é nenhures. O seu tempo o do desaparecimento. Os outros foram perdidos e o próprio existe no isolamento abominável do seu abandono.

Por isso, o final do derradeiro poema de Desvão reacende a possibilidade de futuro e dá compreensão a uma espera possível formulada quase em prece:

o profeta receberá a morte com um abraço lânguido, quase sensual e juntos partirão à procura de um local que àquele se assemelhe, sem que, para merecê-lo, seja preciso viver, que é como quem diz quebrar o coração.


António de Castro Caeiro


ela corria pelo cemitério 
como se os salvasse 
sudários 
mortalhas breves
florescendo jovens 
cadáveres por abrir 
dois mortos somados 
infinitamente 
até à obliteração dos frutos 

as folhas 
inacessíveis 
à queda 

domingo, 23 de outubro de 2016

numa daquelas ruas onde a manhã 
é mais funda e comprida 
trazias um carro pela mão 
e o fundo do mar nos bolsos

lias como se tivesses os olhos fechados 
e o corpo preso nas tuas olheiras, 
insónias vivas 
– creio que me afogo se não as largar

eu já fervia no teu sangue 
como uma âncora 
impossível pensar o espaço 
sem uma linha:
para trás é futuro, para a frente poema
feitas as contas o resultado 
era um lugar novo 
como um abraço oferecido
ao náufrago 

(trazias um braço de papel 
e o outro 
de quem não faltasse)

mas a logística da vida mecânica tortura 
o momento 
dizias que passámos dias inteiros juntos 
onde eu não estava
a tua solidão era um gesto de criança 
um acto de criação nossa 
onde mal cabias sem poder morrer

tu que outrora conseguiste dançar numa pista de silêncio
como se ardesses o tempo
fazendo do corpo uma pira para onde jorravas
o doce osso de um velho agosto 
em prol de um animal melhor
– queimavas setenta camuflagens numa só noite e saías 
fumegando fresquíssimas memórias de guerra 
prontas a contar para esquecer num só verso

restava apenas uma poeira cinza cósmica 
e na sujidade do teu arrasto construíram 
cidades até ao limite exterior do teu nome 
sem nunca conseguir entrar nele por mais 
que uma noite no céu de um país estrangeiro 
e estival

nos meses de verão era proibido usar 
o teu nome em qualquer expressão 
nem para a libertação da angústia 
tudo 
para esconder o dia em que a tua lápide
suporta a terra
ainda hoje atiro o teu nome às pedras 
para o fazer calar 
e desfazer o teu rosto no espaço
que reaparece como uma súplica
em cada sítio que bate 
é a infância 
que vem até ti
um gesto por cumprir 
o inferno por arder 
eterno retorno que começa 
por te cansar 
antes de o entenderes 
sempre tarde demais
talvez a repetição seja a nossa grande criação 
a escolha de um fio 
a cabeça suspensa
e o corpo em queda 
as pessoas como tu caíam em si 
como abismos no firmamento

pois removam-se os escombros 
e tragam-se os santos


Sammuel C. Dayton 
– diários de um corpo menor 

é possível que a austrália seja uma andorinha despenhada 

Catarse ao mar - não simão

dois poemas de Nunes da Rocha – Cova Funda (&etc)

do livro "Cova Funda", &etc 2011





 

Chico Buarque - Geni e o Zepelim (DVD "Na Carreira")

sábado, 22 de outubro de 2016

declaração de costumes para detenção imediata

homem com cicatriz entre 
a penha de frança e s. vicente
vive no sonho de um gato 
e tem outro que nasceu 
do fundo de um poço 
associado conhecido: zorba 
— gato malhado e mesmo 
que assim não fosse
quando deitado tem rabo 
de tamboril 
 
Nestes dias tenho estado sempre sóbrio, mas tive um sonho. Era um sonho em que não estava deprimido – como se nunca tivesse estado – e a sensação era óptima. Tudo tinha três vezes mais significado e não havia momento em que não se celebrasse o sentido épico da existência e do que já tinha existido. Todos tinham nome e belas histórias. E tu estavas lá também – todos. E havia uma espécie de obelisco ao largo de uma baía para onde as pessoas saltavam sem saber que havia água e que tinha sido construído por um fulano chamado Jerry Gnomo – um herói gigante do passado. O filho dele era um rapaz de estatura mínima com o nome David que se dependurava sentado no muro da praia. Não tinha feito nada na vida para além de carregar o nome do pai, de quem era uma amostra de homem. Mas era jovem ainda. Observei-o atentamente e percebi que estava a ver-me como se fosse ao espelho. Eu também era – e sou – uma amostra de homem. Mas ao contrário deles eu sou velho e trôpego e o meu único feito foi – e ainda é – o de carregar a juventude do teu nome. Por vezes pergunto-me se ainda haverá sequer amostra para provar que o resto existe e está escondido num tanque de um sonho onde o corpo só chega de mês a mês para cumprir o ritual de libertação de todas as tuas respirações atrasadas – as que sobreviveram. 
Não me consigo sintonizar com este tempo, o agora, que só pode ser intuído fazendo parte dele absolutamente. Mais do que preso, o que sinto é como se a minha existência fosse operada à distância, remotamente – ou seja, existo remotamente; aqui sou um apenas um projecção holográfica de mim mesmo, sujeito às inevitáveis variações da órbita da consciência. Vejo tudo como uma projecção esbatida, de que consigo apenas ter interpretações e não sentidos: estou necessariamente desfasado, incompleto e distante. O que sinto é como um peixe: esquece-se de si próprio a cada três segundos, repete-se e cansa-se a si e aos outros sem o saber. 
Desconfio que o que me vem neste sonhos é o movimento da água a voltar ao meu pensamento para me ensinar; ou seja, amanhã não me vou lembrar do que estou a sentir. Por isso estou a fazer-te minha testemunha – tu és a água que estava na baía, que ia e regressava secretamente para criar um estado de suspensão por onde se podia chegar ao obelisco, nadando sem saber nadar. 
Na vida real o meu corpo não é um peixe, só o pensamento. O meu corpo lembra-se até demais. Mas ainda bem que não é um peixe: odiaria se a água do banho voltasse para me relembrar todos os movimentos que lavei e que de tanto me arrependo e ainda assim consegui enterrar.
Era isto que na verdade queria dizer com a palavra "amostra".
O passado, mesmo sonhado, é mais nítido porque está armazenado: basta apenas olhar para dentro dele como se fosse agora e conectá-lo à fonte interminável de energia que é a angústia de um sonho teu. 
Na verdade, é mais o passado que me observa como um professor, um professor antiquado e quase obsoleto, mas ainda assim um professor que regressa sempre. Na verdade, ainda tenho muito para aprender. 
Merda, não fiz os trabalhos de casa.


Sammuel C. Dayton
– “Pequenos escritos à minha juventude”