segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O silêncio, de Philip Schultz

para RJ

Tu ligavas sempre tarde e bêbado,
a tua voz exuberante de dor,
Eu tapado a sonhar,
escutava-te como se fosses um fantasma.

Hoje à noite um amigo ligou para dizer que o teu corpo
foi encontrado no teu apartamento, onde
já estavas morto havia alguns dias. Tinhas perdido o teu emprego,
parado de escrever, não vias ninguém há semanas.
Foi coração, disse ele. A bebida tinha-te destruído.

Conhecemo-nos numa cidade universitária,
Onde tivemos os nosso primeiros empregos a ensinar,
Os poemas fluíam de uma dor consagrada
Por mito e álcool. Eu invejava a maneira
como as mulheres olhavam para ti:— um urso cego de raiva,
que despedaçava a madeira cada vez mais tenebrosa.

Uma vez trocamos poemas como quem troca fotos de mulheres
cuja beleza punha à prova a fé em Deus. "Lê este
sobre como a amizade entre os jovens não pode durar,
há-de arrancar-te o coração ao peito! '

Uma vez ligaste para dizer que J se tinha ido embora,
a dor ficou presa à tua garganta como uma lâmina de barbear.
Uma mulher estava a chamar-me de volta para a cama
e eu disse-te que te ligava depois. Mas nunca o fiz.

O cheiro profundo e desamparado a musgo e pinheiro
Nas traseiras da tua casa de pedra, tu dedilhando
e cantando Lorca, Vallejo, De Andrade,
como se cada sílaba soubesse a sangue,
como se tu tivesses todo o tempo do mundo. . .

Tu sabias bem que os teus anjos te tinham amado
mas também sabias que eles abandonariam

quem quer que fosse que não pudesse ser salvo.

Philip Schultz
tradução de António de Castro Caeiro

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