segunda-feira, 24 de outubro de 2016

António de Castro Caeiro lê "Desvão", de Miguel Martins

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Ein Buch ist ein Spiegel, wenn ein Affe hineinguckt, so kann freilich kein Apostel heraus sehen.

Georg Christoph Lichtenberg

O adágio de Lichtenber aplica-se com a sua força máxima à poesia de Miguel Martins neste seu Desvão. Os treze poemas que compõe o livro podem ser lidos isoladamente. Quem leu alguns avulso no seu Blog terá feito essa experiência. Mas os treze são também uma unidade orgânica. Apresentam elementos complexos de uma poética da facticidade.

Podemos identificar temas que estão sob foco poético em cada um dos poemas. Mas há uma mesma identidade trama temática bem como operadores poéticos. A poesia abre o olhar sobre si própria e não apenas sobre a vida com a qual lida, a que se reporta, de onde parte.

Em “Há, entre a tela e o olhar, uma película” encontramos um pensamento sobre este ponto de vista ou perspectiva a partir dos quais o objecto de cada poema é considerado. Melhor, percebemos aí como toda a realidade é isolada, vista e interpretada, a partir de um ponto de vista que não está disponível habitualmente, possa embora encontrar-se implícito de forma latente, à espera da possibilidade de ser inaugurado e ficar aceso.

A realidade poética não é apenas aquela que se encontra expressa em cada poema, em cada verso, em cada palavra. Antes, toda e qualquer realidade, os outros que aí se encontram. As praias. Os quartos. As ruas. Os sinos. Os relógios. Os carros que passam na avenida. Lágrimas e ostras. Bem como a entidade complexa a que chamamos nós próprios e as relações que se estabelecem com os outros e com o mundo. Toda e qualquer realidade é filtrada pelo olhar excessivo do ponto de vista poético.

“Entre a tela e o olhar há uma película mais ou menos fina, mais ou menos espessa, a que costumamos chamar, arte, como se entre a vida e os trovões, a insinuação de uma matéria tépida pudesse aliviar-nos da fraqueza e do medo.” (12)

A película é um campo de forças aparentemente inerte e desligado, isto é, ainda não accionado. A poesia esconjura-a. Olhar e tela são também vistos através da película. Tudo encontra-se envolvido por uma atmosfera e por ambientes que, uma vez descobertos, possibilitam um outro modo de ver, de viver, de compreender o que de cada vez acontece.

O mundo das coisas passa a ser um mundo de sentido. Os objectos aparentemente em si do quotidiano e desligados de qualquer sentido para além do real, transfiguram-se e passam a existir num horizonte de significado, como se fossem personagens, pessoas, com vida própria.

A ambiguidade das palavras é quase absoluta. O mundo das coisas e o mundo dos significados são impermeáveis se não houver um chamamento e uma produção desse outro mundo. A realidade é filtrada poeticamente por quem faz poesia, não necessariamente por quem escreve frases alinhadas a que chamam poemas. 

A leitura requer por isso não um contacto imediato com o reflexo ou a reacção que temos ao que lemos, mas implica o trabalho lento, feito em esforço e agonia, um trabalho de desconstrução ou arqueologia que nos pode levar a anular a distância entre o imediato e primário e o que se encontra desmaiado ou adormecido no interior da película. E assim coincidir a leitura pode fazer-nos coincidir com o abismo.

 Acordar dessa dimensão leva a desviar “o olhar na direcção da rua”. Somos atirados para “o fosso onde se perderam as nobilíssimas coisas imaginadas pelas crianças doces”. É o horizonte descrito como o “pano de fundo de breves alegrias” onde vivemos. E quem encontramos é “gente condenada a uma tristeza perene”.

É ainda no contexto de aproximação ao processo e método de instalação do ponto de vista poético que podemos compreender a coexistência de mundos paralelos e de dimensões incomensuráveis que permitem uma experiência linguística que provoca perplexidade.

Logo no poema de abertura do livro, “Num refúgio da sombra”, percebemos o carácter incomensurável do ponto de vista poético constituído como forma de vida.

“Estou aqui a mais e em nenhures a menos, desinflei pelas costas” ou “a eternidade dá-me sono”.

É aqui que a polissemia permite vasos comunicantes entre realidades situadas em campos de sentido absolutamente apartados entre si:

“Queijo? Sim, pode ser. Isso e a lua na mão esquerda, por favor, e um pincel extremamente fino, para alindar-lhe a boca”. Ou “meia” pode ser de leite, estar no pé, ser meia lua ou meia maratona. (14)

É também aqui que lugares em sítios contrários se contagiam e o infinitamente grande se reduz ao infinitesimal e vice versa o infinitesimal se expande a dimensões macro-cósmicas.

O horizonte poético permite compreender

“vozes que vendem ilusões bíblicas às raparigas que olham para o tecto como se fosse o chão”, onde a “sombra” que é o próprio “foge até ao rio inalcançável que nasce no tronco de uma árvore enorme e morre no buraco de um prego desaparecido”

e a grandeza do conceito de si próprio na verdade apenas se faz anunciar

“fazendo soar os sinos dalgum pequeno campanário de algibeira”.

É no contexto da possibilidade de esconjurar uma atmosfera poética, na verdade, no interior ou na presença intrínseca desse mesmo horizonte, que podemos esboçar o mapa a estudar pela geografia do sentido da facticidade humana. Mas ao falar-se de geografia, mesmo que metaforicamente, temos de ter em atenção que a hipótese interpretativa resulta num estudo de fronteiras que se alteram ao longo da história e que são habitadas por povos diferentes bem como das modificações morfológicas das costas da terra.

Aqui porém a geografia tem em vista o carácter mutante da vida humana no mundo. A nossa relação com a vida de que somos portadores e com os outros também portadores de vida é o plano de fundo que corresponde a uma das manifestações da película entre o olhar e a tela de que se falou.

A geografia do sentido, a poética da facticidade, tem como objecto o itinerário peculiar da odisseia que é cada vida humana, uma odisseia não para um sítio, porquanto não nos deslocamos no espaço, mas uma viagem para o próprio de cada um de nós e que constitui a própria paisagem do mundo que habitamos, o modo de sermos uns com os outros e nos encontramos no mundo.

O sentido que habitualmente imputamos aos estados do caminho da vida está orientado por uma compreensão de possibilidade de hipertrofia, de melhoria cada vez maior da condição de vida, de alcance de objectivos sempre maiores a que nos propomos, nas diversas habilitações a que nos candidatamos: literárias, desportivas, políticas, financeiras, afectivas, emocionais. A ânsia e a aspiração incendeiam-se por uma falta constitutiva que se sente do que falta, do que é decisivo e dá importância a tudo.

Mas a maneira de viver a queda na facticidade não tem contacto com este darwinismo existencial, na verdade, é totalmente inadaptada, mais do que isso não se percebe como subsiste.

O contacto com o superlativo e a possibilidade de uma hipertrofia absoluta de tudo o que somos é o contacto com a possibilidade perdida, com a derrota, com o cansaço, com a insónia, com a desilusão e o desamparo. Perda, derrota, desilusão e desamparo não são episódicos mas são crónicos.

Esta possibilidade que está a ser considerada é uma vida já acabada quanto à possibilidade e à expectativa, tem o futuro atrás das costas e a subsistência é a de um para sempre nunca mais:

“é como se toda a vida tivéssemos merecido as tábuas de uma ópera e, por azar, a noite tivesse caído caída cedo de mais sobre o mundo”.

Só a partir deste ponto de vista de um ser que, ainda que no encaminhamento da morte a não aguarda já, mas a vê antes apartar-se de si, abandonado na terra de nenhures, se pode compreender como a vida era outrora:

“uma força imoral, uma urgência rara como todas as urgências” que “decompunha espelhos sobre espelhos, encadeava os dias e inventava a serpentina aparentemente interminável de quando se tem ainda a dentição intacta”.

A temporalização desta vida, o tempo característico de quem vive assim é a da precipitação ou da lentidão incomensurável do tédio:

“aceleração contínua, substância mesma de ser uma esquina”.

É assim que

“cumpro repetidamente os passos que vêm de uma parede à outra”. Sendo certo que “a eternidade me dá sono”.

Ou como se lê em Toda a santa noite, o tempo é medido por

“um relógio de cuco, pelo sino de uma igreja, por um carro na avenida”.

O que é cronometrado com objectos do mundo, não necessariamente relógios, é a medula espinhal da vida assim vivida, o coração do tempo:

“a insónia a tomar o peso do desalento e a ternura em fuga por um campo deserto.”

O tempo é indicado pelo “depois”. “Depois, tudo pára”. É o tempo do “degredo”, “esquecimento”, “outrora”, do “desespero ao largo”.

Estas breves indicações aparecem com um sentido tornado completamente transparente em

“Quando os tempos vivos se tornam tempos mortos, vistos com distanciamento e sem ilusões, chegou a hora de deixar de escrever”. “A esperança de vida dos humanos foi calculada com frieza, precisão”. “Por isso, os jogos de cartas nos jardins são os mais generosos cais de embarque para a grande aventura do desaparecimento.”

O desaparecimento permanente é a direcção da poética da facticidade. A vida é a preparação que nos orienta para esse contínuo desaparecimento: omne momentum mors prioris habitus est (Sen. Ep. 58).

A vida não é vivida na expectativa do ganho, da hipertrofia, da configuração do superlativo. Ela é de facto desde sempre a ser a desaparecer.

A dificuldade consiste em perceber como é possível viver sem expectativa, isto é, com todo o património de esperança, expectativa, possibilidade de espera absolutamente esbanjado.

“não conseguir dar por finda a infância, tornar-se homem, aprender a dar corpo a uma ideia”. Embora de vez em quando se “regressa a algumas páginas de esperança sem fundamento prático”, ao casulo em que podia ter qualquer idade, em qualquer tempo, e ser ministro, padre, moleiro, faroleiro, herói, ora romano ora cartaginês.”

Por isso: Sinto saudades do que era suposto ter sido, mas uma lâmina desalmada amputou-me (17).

Os outros são vistos nesta dimensão temporal:

“Agora, és outra pessoa” trabalhada pelo tempo e a distância”, esse outro que agora encontra “encanto na normalidade”, já sem “megalomanias nem paióis de pólvora seca”.

Este outro é a possibilidade perdida de um encantamento com o superlativo. Surge agora a alguém para quem os dias da vida

“são feitos de excessos e vazios e o vazio excessivo é a própria matéria por que pugna o muito tempo em que não calha compor estas vagas linhas sobrepostas a que insistem em chamar poesia, mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono”.

A radical perda de possibilidade da poesia, não da falta de inspiração ou lá o que a trabalha, mas a radical perda da única possibilidade em que a vida pode ser vivida na tela, no reino intermédio, rouba a única possibilidade de surfar na orla.

A conversão de tudo no sentido irreal da poética da facticidade curto circuita-se quando a poética tem a poética focada do ponto de vista da facticidade. O único campo de hipertrofia e de possibilidade de alcance do superlativo, a única maneira de viver a vida ao ser poético colapsa e desmorona-se.

Os dias deixam de ter até essa pequena agenda que permite existir fora da realidade e passar as horas dos dias. Agora nada há.

A grande aventura do desaparecimento é a conciliação com a perda de possibilidades, com o confronto com a realidade da vida no facto do seu desaparecer sem apelo nem agravo, nem alegria avulsa ou episódica com o alinhar de uma única frase ou invocação de contentamento mínimo e breve que seja.

Vive-se num lugar sem lugar:

“numa cela de xisto e cal”. “Um dos grandes poetas da língua e do tempo morre numa cela de xisto e cal e nada pede. Esse era o seu único desejo e habita-o como se fosse mansarda da alma”. “Finalmente, encontrou o seu lugar no mundo, um lugar só seu”. “Talvez pudesse ter sido de outro modo, ter nascido com assa sem a atracção para o pricipício que o tornou celerado e menestrel. Que nada!”

É na consideração da possibilidade de ter sido de maneira diferente, o condicional do que poderia ter sido e não foi ou do que não poderia nunca ter acontecido e foi mesmo o que veio a acontecer que se percebe que a aventura, a odisseia para si, é uma compreensão da morte de todas as coisas e a morte da possibilidade total que ofereciam, uma grande decepção, uma enorme tristeza, sem redenção, já sem palavra que diga da situação em que nos encontramos quando caímos no facto puro e duro de ter de ser sem sentido.

Mas nada disto seria compreendido a não ser em abstracto senão se invocasse qual o sentido do preenchimento da expectativa, qual o carácter do superlativo, qual a verdadeira avenida em direcção a um ser maior, ao preenchimento da máxima possibilidade de cada um de nós.

Todos os conteúdos das nossas vidas, todas as pessoas e nós próprios, encontramo-nos sob pressão de uma possibilidade constitutiva. Aprender a ser quem somos e ser dessa maneira. Sermos os próprios. Quem não compreende não é. Diziam os antigos. O melhor de tudo não ter saúde nem riqueza, nem ser o máximo, o que quer que isso queira dizer. Dizia o epigrama de Delos, o melhor de tudo é encontrar um amor de vida e viver a vida a amar.

A possibilidade radical de uma vida que caiu na facticidade obscurece tudo. O seu lugar é nenhures. O seu tempo o do desaparecimento. Os outros foram perdidos e o próprio existe no isolamento abominável do seu abandono.

Por isso, o final do derradeiro poema de Desvão reacende a possibilidade de futuro e dá compreensão a uma espera possível formulada quase em prece:

o profeta receberá a morte com um abraço lânguido, quase sensual e juntos partirão à procura de um local que àquele se assemelhe, sem que, para merecê-lo, seja preciso viver, que é como quem diz quebrar o coração.


António de Castro Caeiro


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