quarta-feira, 5 de outubro de 2016

cronologia de um subterrâneo

há dias – raros, muito raros – em que acordo quase sem ansiedade e, com uma réstia de honra, consigo tocar no significado aparente da manhã quando ainda estavas presente. acontece normalmente depois de um sonho milenar de antigos almoços, duelos de bravura sensível entre irmãos e assaltos a bancos imaginários para afastar a doença de um emprego; são noites infindas com amigos e lugares que são muitos lugares ao mesmo tempo, encontrados na distância que cai entre um copo e o seguinte, e que terminam sempre com um mergulho prometido em Goa (ou nas águas quentes e aromáticas do café da tua pastelaria preferida em sexton street).
vejo as cadeiras da sala perfeitamente alinhadas e arrumadas, como que pela primeira vez, e a luz entrando livre pela janela como um feriado, permitindo a tão necessária reinvenção humana depois da incessante matança dos dias que levou a que deixasses esta casa como um estrangeiro. já não é de todo possível que a luz te reinvente; e, muito sinceramente, nem sei se é feriado. já nem sinto a diferença dos dias, não tenho esse prazer. toda a mudança me dá ansiedade, por mais pequena que seja e tanto mais se antecipada e rotineira, como os horários, as marcações de calendário, o próprio calendário, e as pessoas. tudo é incerteza repetida e com hora marcada. só prevendo o futuro se consegue atenuar os efeitos destrutivos do seu campo vasto de árvores possíveis, embora imprevisíveis como ondas em alto mar.
e a melhor forma de prever o futuro é vendê-lo à certeza do teu desaparecimento. nenhum oceano navega agora pela tua memória. apenas um fio de água no lençol de que me consigo desenterrar um pouco mais leve em dias como hoje. durante o resto do tempo partilhamos subterrâneos intocáveis entre si, como que em planetas diferentes. nasci no fundo da terra sem saber que te ia renegar da sua superfície. e ainda aqui estou, seguro da minha sentença e carrasco da tua.
mas só pude fazer isso com a tua ajuda. porque me ajudaste tão bem, meu caro?

Sammuel C. Dayton
– pequenos escritos à minha juventude

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